More Rúrion Melo »"/>More Rúrion Melo »" /> Rúrion Melo - Revista Ritmo Melodia
Uma Revista criada em 2001 pelo jornalista, músico e poeta paraibano Antonio Carlos da Fonseca Barbosa.

Rúrion Melo

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Rúrion Melo é doutor em Filosofia (USP) e professor de Ciência Política (USP). Além de trabalhar com temas de filosofia política e teoria social, contando com muitos artigos e livros já publicados, também desenvolve pesquisas voltadas à filosofia e à sociologia da música.

Iniciou os estudos de violão e guitarra em 1991. Em 1993 passou a ter aulas de guitarra com André Hernandes. E em 1996 iniciou o curso de guitarra do prof. Mozart Mello, completando-o em 2000. Participou ainda em variados cursos de música, oferecidos por escolas e conservatórios. Profissionalmente, acompanhou por mais de 15 anos diferentes artistas em shows e gravações de discos, também atuando em publicidade, bem como manteve trabalho próprio com apresentações em diversas casas de show, bares e eventos públicos, também fora do Brasil. De 1995 a 2005, foi professor particular de aulas de guitarra e violão, ensinado neste período mais de 50 alunos.  Ampliando seus estudos musicais, em 2018 começou a estudar bandolim com Fábio Peron.

Embora interessado na linguagem musical variada (bossa nova, jazz, blues, rock, samba, choro), dedicou-se especialmente à música instrumental. Em 2001 gravou o CD com o trio “ComFusion” (Ao vivo e valendo), cuja proposta consistiu em experimentar a fusão do jazz com o rock. O trio de música instrumental se manteve ativo de 1996 a 2010. Atualmente concilia o estudo constante do repertório da música instrumental brasileira com as pesquisas sobre música e teoria social.

Segue abaixo entrevista exclusiva com Rúrion Melo para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 14.09.2020:

01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal? 

Rúrion Melo: Nasci no dia 12 de agosto de 1977, Fortaleza (CE).

02) RM: Fale do seu primeiro contato com a música.

Rúrion Melo: Muito difícil estabelecer o primeiro contato, já que nasci e cresci em casa de músico, meu pai o canto e compositor Jorge Mello, já entrevistado pela https://www.ritmomelodia.mus.br/entrevistas/jorge-mello/. A música certamente desde muito cedo fez parte do meu cotidiano. Quando eu era pequeno, meu pai tentou me ensinar Piano. Não foi muito para a frente. Apenas com 11 anos de idade eu me interessei por Violão. Depois que ele me passou os primeiros acordes da música “Trem das Onze”, do Adoniran Barbosa, nunca mais larguei a música e o instrumento.

03) RM: Qual é sua formação musical?

Rúrion Melo: Foi em 1991 que tive contato tanto com Violão quanto com a guitarra. A Guitarra foi por causa de uma banda de Rock que formei no colégio logo nos meus primeiros meses. Neste período, além dos amigos que tocavam nas bandas do colégio, meu pai Jorge Mello foi a referência mais próxima. Isso foi importante profissionalmente, mas sobretudo por causa da influência da música brasileira desde o início.

Somente em 1993 passei a estudar Guitarra realmente, quando comecei a ter aulas com André Hernandes, um guitarrista excepcional. Embora o forte de sua formação fosse Rock e Fusion, com André pude explorar abordagens avançadas na guitarra. Ele dominava a linguagem mais avançada dos guitarristas de então e abranger um vocabulário de estudo que ia da teoria musical e análise composicional até à diversidade de estilos musicais: Rock, Jazz, Country, Blues e muitos estudos técnicos: tipos variados de palhetadas, técnicas da mão esquerda, two-hands, tríades, inversões, saltos etc. De 1993 a 1995, suas aulas me abriram um mundo inteiramente novo, sendo decisivas para o meu desenvolvimento no instrumento. Os melhores guitarristas daquele período que se encontravam em São Paulo, incluindo André Hernandes, tiveram um professor em comum, referência máxima nos estudos de guitarra: Mozart Mello.

Em princípio, poder estudar com Mozart Mello era um sonho inalcançável. Você precisava esperar na “fila” por meses ou mesmo anos para conseguir uma vaga nos seus cursos individuais. Pois esse sonho se tornou realidade em 1996, quando finalmente Mozart Mello me ligou dizendo que havia uma vaga aberta e que eu poderia começar a ter aulas com ele. Não há dúvidas de que me sinto privilegiado por ter tido a oportunidade de aprender tanto com ele de 1996 a 2000. Trata-se de uma experiência única, que te coloca em um patamar superior, com desafios novos a cada aula. Mozart Mello é conhecido como um “cientista da guitarra”. Ele sempre teve uma dedicação sem igual à pesquisa do instrumento. Para poder absorver todo aquele conhecimento, suas aulas exigem muita responsabilidade também por parte de seus alunos.

Mozart Mello não somente cristalizou os ensinamentos de André Hernandes; que, aliás, já me passava muito material de estudo que era do Mozart também, mas me empurrou muito à frente, uma combustão crucial para meu desenvolvimento posterior. Carrego até hoje as marcas de sua herança; na maneira de tocar, na concepção musical, na universalidade.

A partir de então fui descobrindo e efetivando de forma mais livre o modo de tocar, o processo de composição e a interpretação. Tornava-se mais intuitivo muito do que Mozart ensinava em termos conceituais: libertar ritmos, inversões e formatos de acordes, improvisações melódicas e construções harmônicas. Se antes dessa experiência eu já procurava compor músicas instrumentais, este foi o período mais frutífero em termos de composição, quando eu aplicava os estudos às composições, sempre na linguagem do Fusion misturado ao Jazz ou à música brasileira. Com meu trio “Comfusion”, tive a oportunidade de viajar e tocar junto com o Mozart (abrindo um workshop) e também gravar com ele em estúdio. Gostávamos de tocar composições do Mozart em nossos shows ou gravações. Ou seja, uma experiência única na minha formação musical.

Os demais cursos, sempre muito importantes, foram bastante pontuais. Participei de uma dezena de workshops e cursos de curta duração, com Faíska, Tomati, Michel Leme, Sandro Haick, Sydnei Carvalho. E sempre que organizavam workshops com guitarristas estrangeiros eu não perdia. Fiz também cursos na escola de música Souza Lima. Lembro-me em especial que tive a oportunidade de participar de um minicurso do Toninho Horta na ULM – Universidade Livre de Música – Tom Jobim. Foram 4 dias intensivos de aula com muita música e ensinamentos, os quais, ao final, me pareceram 4 meses! Toninho Horta é uma das principais fontes da minha trajetória, mudou minha concepção poder participar de seu curso.

Ultimamente, depois que passei a estudar Bandolim e me embrenhei pelo Choro, comecei a estudar com Fábio Peron, um jovem bandolinista de primeira linha. Também tenho aproveitado para fazer cursos “on-line”, uma oportunidade nova para ter contato com excelentes músicos. No geral, são cursos de curta duração. Fiz o de Violão com Alessandro Penezzi, um de Violão de 7 cordas com Rogério Caetano e também o Princípios da Improvisação na Música Brasileira, do Hamilton de Holanda. Gostaria muito de ainda poder fazer “O segredo da música”, idealizado pelo Sandro Haick.

04) RM: E qual é a sua formação acadêmica fora da área musical?

Rúrion Melo: Sou formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com Mestrado e Doutorado pela USP em Filosofia. Atualmente, sou professor de Teoria Política no Departamento de Ciência Política da USP.

05) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente?

Rúrion Melo: Eu me considero eclético em termos de influências musicais. Contudo, em linhas gerais, consigo traçar um percurso que me levou do Rock e do Blues para o Jazz, de um lado; da Bossa Nova e da MPB em direção ao Samba e ao Choro, de outro lado.

Nesse percurso, não há dúvida que os guitarristas foram referência maior, sempre respeitando as linguagens de cada um. Os nomes não surpreendem, pois são conhecidos da maioria dos guitarristas: Jimi Hendrix, Stevie Ray Vaughan, Van Halen, Steve Vai, Joe Satriani, Steve Morse, Eric Johnson. Acabei me envolvendo por um bom tempo mais com os guitarristas do Jazz Rock e do Fusion, como John MacLaughlin, Frank Gambale, Allan Holdsworth, Scott Henderson, Greg Howe. Daí para o Jazz foram linguagens muito adaptáveis para mim: desde Wes Montgomery e Grant Green até Joe Pass, Pat Martino e Pat Metheny. Muitos nomes ainda poderiam ser mencionados em cada uma dessas correntes que eu mencionei. Claro que os guitarristas brasileiros foram muito fundamentais neste meu percurso: Heraldo do Monte, Hélio Delmiro, Lanny Gordin, Pepeu Gomes, Toninho Horta, Nelson Faria, Ricardo Silveira, entre outros, são geniais.

Como se trata de formação, eu não poderia ter me restringido aos guitarristas. Também pianistas, saxofonistas, baixistas e bateristas fizeram parte da minha lista de referências musicais. Além disso, existem referências no Brasil que eu considero universais, tais como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Sivuca, Moacir Santos, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti. Também incluiria aqui Dominguinhos e, mais recentemente, Hamilton de Holanda, sem dúvida alguma.

No entanto, eu não poderia deixar de mencionar mais explicitamente aqui os violonistas, sobretudo considerando a rica escola de violão brasileiro que temos à nossa disposição. Penso ter passado pelos principais nomes dos nossos violonistas de formação: tanto Garoto, Dilermando Reis, Baden Powell, Paulinho Nogueira, Dino 7 Cordas, Raphael Rabello, como também Guinga, Marco Pereira, Yamandú Costa, Marcus Tardelli, Ulisses Rocha, Alessandro Penezzi, Rogério Caetano. Em especial, fora da música brasileira, fui impactado constantemente pelo violão de Paco de Lucía. Insisto apenas que o universo das influências é muito mais vasto do que eu poderia sintetizar aqui.

06) RM: Quando e como você começou a sua carreira musical propriamente dita? Fale um pouco sobre sua experiência profissional na música.  

Rúrion Melo: Começou com meu pai Jorge Mello, em 1993. Eu tocava fazia apenas dois anos. Foi um período em que eu tocava muito Rock e Blues, mas durante os shows precisava “correr atrás” para aplicar o que eu sabia ao repertório de canções, baiões e sambas da música brasileira. Meu pai não apenas se apresentava ao vivo, mas fazia muitas gravações de estúdio: discos, jingles etc. Neste mesmo ano eu também gravei em estúdio pela primeira vez: uma trilha para uma peça teatral. Além disso, ele tinha a produtora JMT Produções, organizando shows e gravações com outros artistas. Quando possível, ele me indicava para tocar com outros músicos de estilos muito diversos.

Isso significa que eu descobri desde muito cedo a música como profissão. Junto com meus estudos musicais, vivenciei o lado mais pragmático da “vida de músico”, músico de acompanhamento, cuja profissão dependia de acompanhar diferentes artistas, abrir muitas frentes para manter o trabalho. Ao longo do percurso, foram muitas bandas e cantores completamente desconhecidos do grande público. Mas também alguns com certa visibilidade, em shows, programas de rádio e televisão. Por exemplo, além do meu pai, meu primeiro trabalho mais regular como músico consistiu em acompanhar o cantor Silvio Brito, o que foi um ótimo começo. Além disso, toquei com Falcão (quando também me apresentei no Programa Livre) ou por alguns anos com a Mara Maravilha (com quem fiz o Programa do Jô Soares).

Durantes muitos anos acompanhei por todo o Brasil o cantor Juliano César junto com a banda Geração Country, também fazendo inúmeras apresentações na “Caravana do SBT”. Foi um desafio, pois éramos uma banda de apoio com a função de acompanhar “ao vivo”, ou seja, sem playback, uma diversidade considerável de artistas em cada apresentação: desde Ronaldinhas até Gian e Giovani, passando por Exaltasamba. Veja que em todos estes casos fica explícito aquele caráter pragmático ao qual eu me referi antes. Eu basicamente cumpria a função de, sem juízos de valor e independentemente do estilo de música, tocar com quem me pagasse. Claro que isso, alguns anos depois, gerou toda a tensão, toda a frustração com a profissão, me fazendo desistir de ter a música como trabalho principal na minha vida. Mas eu também pude ter experiências muito gratificantes com essa função de músico de acompanhamento.

Logo em 1995, participei de um projeto chamado, se não me engano, algo como “Sons da Cidade”, em que, durante 6 meses, meu pai e Belchior faziam apresentações em algumas cidades de São Paulo. Eu tocava com meu pai, Belchior era acompanhado, como de costume, pelo guitarrista e violonista Sérgio Zurawski. A proposta era fazer um show “acústico”. Belchior era sócio e parceiro musical do meu pai, além de amigo íntimo da minha família. Mesmo assim, tocar com ele nesse período, em que na verdade eu apenas iniciava como músico profissional, foi impactante.

Paralelamente, como minha conexão com a música passava pelo estudo do instrumento; eu me compreendo, antes de tudo, como instrumentista, mantive tanto meus projetos de música instrumental com meu trio Comfusion, quanto as apresentações em bares e casas de show com banda própria; por muitos anos, com a Yabadaba Blues, que, a despeito do nome, tocava principalmente música brasileira. No primeiro caso, o retorno financeiro foi praticamente inexistente; no segundo, muito modesto. No entanto, nos dois casos, eu ganhava em termos de autonomia: eu tocava o repertório que eu queria.

07) RM: Como você avalia suas experiências com “bandas próprias”?

Rúrion Melo: Foram três bandas, cada uma com uma característica. A “Geração Country” teve vida própria. Mas éramos músicos bem preparados para acompanhar, como já mencionei, artistas da indústria cultural. Este era nosso objetivo. Com alguma variação, quase os mesmos músicos tocaram com Mara Maravilha, Juliano César, Mano a Mano, Sérgio Malandro, Celso Portiolli etc. Todos vinculados ao mercado fonográfico de massa. A formação contava com Eduardo Capello (teclado), Marcelo Gasperini (bateria), Duda Lima (baixo) e eu na guitarra. Eduardo, eu e Duda fazíamos vocais também.

O “Comfusion” teve duas formações. Na primeira: eu na guitarra, Brenno Di Napoli no baixo (que depois tocou com KLB e Rita Lee) e Rodrigo Silveira na bateria; na segunda, Duda Lima substituiu Brenno no baixo. Tocávamos Fusion e Jazz Rock, com interpretações variadas de músicas de artistas internacionais reconhecidos (Greg Howe, Steve Morse, Allan Holdsworth, Tribal Tech, Frank Gambale, Weather Report, Chick Corea etc.), composições instrumentais de artistas brasileiros (Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti, Toninho Horta, Mozart Mello) ou versões instrumentais que fazíamos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Tom Jobim, inclusive músicas do meu pai. Mas fazíamos principalmente músicas instrumentais próprias, que eu compunha com bastante frequência. E o céu era o limite, apenas o experimento composicional interessava, não o retorno financeiro. O mercado de música instrumental, sobretudo naquela segunda metade dos anos 1990 e início dos 2000, era muito, muito restrito. Para ter espaço, nós nos apresentávamos em algumas casas especializadas e em projetos públicos. Neste caso, a autorrealização musical proporcionada pelo “Comfusion” não se revertia facilmente em retorno financeiro.

No entanto, com o “Yabadaba Blues” descobri um nicho que me dava um retorno financeiro um pouco mais em conta, sem ter de abrir mão da autonomia na interpretação do repertório. Era uma banda que tocava MPB em sentido amplo, com um repertório extremamente rico (salvas as exceções, tocávamos lados Bs e Cs do melhor da música brasileira) e uma interpretação instrumental nova, ousada e diferenciada. O curioso é que eu me atrevi a cantar; não sou cantor, porém desde 1996 eu passei a cantar por pura necessidade. Durante 2000 a 2005, toquei com o Yabadaba constantemente em bares e casas noturnas. A primeira formação contou com Brenno Di Napoli e Duda Costa (bateria), depois ficamos eu, Duda Lima e Rodrigo Silveira, a mesma formação do “Comfusion”. Foi o máximo que pude realizar naquele período para compatibilizar autonomia musical e financeira, sem precisar me submeter a ter de sempre acompanhar artistas com carreira na indústria cultural.

08) RM: Mas a “indústria cultural” sempre foi vista por você como algo negativo?

Rúrion Melo: Naquele período, era vivida como “negativa” porque me dava a sensação de perda de autonomia. Eu entrei na carreira profissional vendo músicos incríveis se limitando a tocar sertanejo, axé e pagode. Esses estilos musicais certamente não são um problema em si mesmos. Ao meu ver, o problema surge quando, por interesse financeiro e mercadológico, restringem de antemão o que se pode popularmente tocar e ouvir. Aqui no Brasil, essa foi a restrição imposta pela grande indústria fonográfica nos anos 1990. Logo, todo músico que procurava sobreviver financeiramente tinha de entrar em algum desses nichos. Mesmo que o músico mantivesse projetos paralelos, como eu fazia com a música instrumental, era muito difícil sobreviver sem se entregar (ou, “se vender”) às limitações da indústria.

Por outro lado, nunca determinei negativamente o conceito e “indústria cultural”. Na história da MPB, a indústria cultural fez muita coisa muito boa e, não sem razão, foi disputada por músicos e artistas (no final da década de 1960). Atualmente estamos diante de uma outra configuração, em que não há necessariamente oposição entre autonomia e difusão popular. As condições variam historicamente. Acho que o músico de hoje tem mais possibilidades à sua disposição para transitar entre mercado de trabalho e autorrealização musical do que na década de 1990.

Assim, se o diagnóstico da indústria cultural varia, é possível medi-lo conforme a imposição que ela exerce sobre a autonomia criativa dos músicos, que às vezes é maior, outras menor. As possibilidades atuais para a autonomia do material musical e dos procedimentos composicionais criam fissuras importantes na lógica mercadológica, que não se mostra como absolutamente hegemônica.

09) RM: Conte-nos de sua experiência como professor de música. O quanto essa experiência influenciou sua relação com a música e seu próprio estudo do instrumento.

Rúrion Melo: Poder dar aulas particulares de música foi muito gratificante. Hoje, como me tornei professor universitário, penso que minha vocação para ensinar pode ter se iniciado naquele período. Aprendemos muito ao ensinar. Em 1995, André Hernandes se mudou de São Paulo para Curitiba. Um pouco antes de sua ida, ele me procurou fazendo uma proposta irrecusável, mas muito desafiadora. Eu ficaria com praticamente a totalidade de seus alunos, garantindo a ele uma porcentagem, evidentemente. Uma semana depois que eu aceitei a proposta, passei a ter 25 alunos de guitarra por semana! Minha vida mudou completamente. Meu quarto não existia mais, virou sala de aula, com amplificadores, guitarras, estantes de partitura.

Os alunos do André eram muito bons. Mas, como me disse na época, ele havia feito a proposta para mim não porque eu seria o “melhor” aluno dele. A escolha se deu porque eu tinha me dedicado a um material de estudo muito abrangente, assim em princípio eu estaria pronto para ensinar alunos com perfis e interesses muito diferentes. De fato, eu estudava de tudo naquela época. Isso contribuiu com a visão mais universal e eclética que hoje adquiri. Porém, manter todas as matérias na ponta dos dedos não foi nada fácil. Eu literalmente passava o dia inteiro com os instrumentos no braço. Dei aulas particulares na minha casa de 1995 a 2005. Em algumas ocasiões eu ia até a casa da pessoa. Ensinava não somente guitarra, mas também violão e baixo.

10) RM: Quais são os instrumentos que você toca? E você acredita que os interesse e influências musicais estiveram ligados aos diferentes instrumentos que você passou a estudar?

Rúrion Melo: Sou guitarrista, antes de tudo. É com a guitarra que me sinto confortável. Também toco violão (de 6 e 7 cordas), baixo e bandolim (de 8 cordas, quero passar para o de 10 cordas). Em razão da capoeira, aprendi pandeiro e berimbau, mas estes só nesta ocasião mesmo.

Os instrumentos expandem nossa visão musical e nosso modo de tocar. Sempre quis estudar instrumentos de sopro porque achava que poderiam contribuir para ampliar minha linguagem melódica na guitarra. O repertório do choro que toco no bandolim e no violão consigo transpor para a guitarra, e vice-versa, pois vou modificando um pouco em virtude da natureza de cada instrumento. Os estudos de “bloco” da guitarra me permitiram tocar o bandolim de forma “armada”, isto é, armar os blocos de acorde junto com a melodia. Algo incomum para o bandolim, mas que passou a ser muito usado atualmente por causa da influência do Hamilton de Holanda.

Mesmo se penso somente na guitarra, cada tipo de instrumento nos inclina para diferentes sonoridades, repertórios e formas de execução. Tenho uma guitarra acústica Joe Pass ES 175 para tocar Jazz e música brasileira, com encordoamento 0.12 cromado. A tensão e a sonoridade são diferentes da Les Paul ou da Stratocaster, ambas 0.10, que também posso usar para Jazz, mas acho mais apropriadas que a outra para Blues e Rock.

11) RM: Quantos CDs gravados? Cite os CDs que você já participou tocando guitarra?

Rúrion Melo: Alguns poucos, onde toquei guitarra, violão ou mesmo baixo. São eles: Jorge Mello – “Mais que de repente” (1996); Jairo Mozart – “T/empo é vida” (1998); Jairo Mozart – “Trilha das águas” (1998); “Geração Country” (1999); Jorge Mello – “Claramente” (2001); “Comfusion – Ao vivo e valendo” (2002); Cláudio Martos – “Tufano” (2005); “Rey Verçosa – Recomeço” (2006).

Não acompanhei o destino de muitas outras gravações pontuais com outros artistas. Fiz várias gravações não publicadas de músicas próprias. Também o segundo disco do “Comfusion” só foi gravado parcialmente. Quem sabe se transformam ainda em material a ser publicado.

12) RM: Em relação à música, como foi sua experiência fora do Brasil?

Rúrion Melo: Eu saí do país para fazer parte de minha pesquisa de doutorado na Alemanha, entre 2007 e 2009. Toquei regularmente em bares de Berlim e pontualmente em alguns outros locais. Cheguei a tocar no casamento de um amigo em Paris. Na maior parte das vezes, encontrei uma condição bastante informal. Isso era motivo de reclamação de muitos músicos que viviam “da noite” não apenas na Alemanha, mas também na França ou na Espanha. Há muita procura por música em bares e restaurantes, mas com cachês baixos. E a oferta recheada dificultava a negociação do seu trabalho, pois muitos ditos “músicos” topavam se apresentar de graça, prejudicando os que precisavam tocar profissionalmente.

13) RM: Como é o seu processo de composição?

Rúrion Melo: Minhas composições são todas instrumentais. Nunca coloquei seriamente música em letras, nem me arrisquei a letrar o que seja. Posso dizer que durante muitos anos minhas músicas eram resultado de estudos. Vozes, tríades, fórmulas, campos harmônicos, escalas alteradas, células rítmicas: tudo era motivo para composição. Os estilos musicais também motivam os caminhos que escolho para compor sem deturpar, por assim dizer, a característica da música (rock, samba, baião, bossa, frevo etc.).

No geral, quando resultam apenas da “construção” formal do material musical, as composições podem ficar muito conceituais, muito “acadêmicas”, correndo o risco de serem bem construídas formalmente, mas chatas aos ouvidos das pessoas. É necessário então o lado “expressivo” da composição para contrabalançar. A composição ficará mais bonita, com certeza.

Às vezes cantarolo uma melodia e vou construindo a harmonia depois. Ou então monto a harmonia e procuro construir a melodia baseando-me nas já presentes nos shapes dos acordes: uma nona, uma sexta, uma sétima maior. Gosto muito, por exemplo, de pensar a construção dos acordes em cima de sequências harmônicas mais “tradicionais”. Algo que o Toninho Horta faz bastante, de maneira única e perfeita.

Como componho com a guitarra ou o violão, é necessário pensar muitas vezes a instrumentação e a execução geral da música. Por exemplo, o “Comfusion” era formado por um “power trio” (guitarra, baixo e bateria), então ao compor eu pensava na interação mais orgânica desses instrumentos. Mas quando gravei coisas com piano também, elementos da composição variavam em razão da instrumentação.

Atualmente me preocupo bastante com as linguagens dos estilos. Por exemplo, estou muito interessado hoje em dia em compreender melhor a linguagem composicional do choro. Mas, em qualquer dos casos, estilos, ritmos e campos harmônicos, eu sempre procuro trasbordar o padrão, acrescentar algo a mais, produzir algum tipo de novidade ou mesmo tensão, uma tendência em prol da libertação das formas e dos materiais. Se fizermos isso com bom gosto, acredito que as composições ganham muito ao final.

14) RM: Qual a importância do estudo da Musicologia para quem atua no mercado musical? E em que medida ela pode ser complementada pela Sociologia da Música? 

Rúrion Melo: Ambas as áreas no estudo musical, a Sociologia da Música e a Musicologia, são absolutamente necessárias. Não sou daqueles que vê nelas apenas oposição e incompatibilidade. Pois tradicionalmente a Musicologia olhou para a lógica interna e autodeterminada da música, dividida em seus elementos próprios (estudo da teoria musical, mas também instrumentação, acústica, notação musical, harmonia). Ela se fechou, assim, diante da dimensão social da música.

Já a Sociologia da Música fez o caminho inverso, voltando-se para fora: a história social da música. Isso incluiu um campo vastíssimo de estudos, em que a música pode ser analisada de uma perspectiva mais interdisciplinar. Temos acesso hoje a muitas pesquisas empíricas a respeito das condições técnicas de produção, da cultura de fundo, do recorte de classe, raça e gênero, faixa etária, estudos sobre a recepção (rádio, televisão e internet), o papel da indústria fonográfica (hoje, por exemplo, a decadência da grande indústria e a mudança nos formatos – analógicos, digitais, mp3 – , considerando atualmente a revolução das plataformas), formação dos músicos e perfil do público, estudos sobre a formação da opinião pública etc. Além de tudo isso, nesse campo encontramos muitos bons estudos sobre a contextualização política dos fenômenos musicais.

Ora, o mais importante é não tratar essas áreas ou campos como concorrentes ou excludentes. Trata-se antes de se esforçar em prol da mediação da construção autônoma das obras musicais com uma compreensão da música como expressão da sociedade em determinados contextos. Por isso, concordo com a ideia de complementação entre Musicologia e Sociologia da Música. Essa compreensão mais abrangente certamente é mais frutífera.

15) RM: Quais os prós e contras ao se desenvolver uma carreira musical de forma independente? 

Rúrion Melo: Os prós, no meu entender, são as possibilidades de autonomia em várias dimensões da carreira musical. Desde a composição até a distribuição do seu produto, em princípio é você quem decide os rumos do seu trabalho. E para quem presa pela atenção dada ao estudo prévio dedicado ao instrumento e à composição, nada mais frustrante (ou alienante) do que alguém intervir no seu trabalho a partir de outra lógica e com outros interesses. No que diz respeito aos contras, acredito que seja pela falta de suporte material, financeiro e institucional. Mesmo em tempos de internet e rede social, os apoios ainda são necessários.

16) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento da sua carreira musical? 

Rúrion Melo: Para quem fez sua formação em um período de certa escassez de material e acesso, como eu ainda vivi no início dos anos 1990, a internet significou uma revolução muito positiva. Conseguir um disco, uma partitura ou uma vídeo -aula naquela época dava um baita trabalho. Hoje não. Temos acesso a tudo, de maneira ilimitada. Posso, da minha casa, estudar guitarra “on line” com Stevie Vai ou com Frank Gambale! Algo que seria de outro mundo, absolutamente impossível. No Youtube ou nas plataformas de música, tenho acesso ao acervo, quase completo, de discos e shows, incluindo até gravações raras, de músicos do mundo todo. Vejo uma democratização fundamental nesse processo, tanto em relação às novidades quanto à recuperação da memória musical.

Mas quando multiplicamos várias vezes essas possibilidades, então o excesso de acesso sem filtro, sem critério, pode se tornar arriscado. Entretanto, esse risco pode fazer com que a internet exponha sua ambiguidade, mas não que isso signifique um prejuízo à carreira musical. Quem souber administrar corretamente e aproveitar as transformações proporcionadas pela internet, hoje em dia pode manter muito bem sua carreira, até melhor do que antes. Não é casual que junto com novos e variados nomes estejamos vivenciando um verdadeiro renascimento de artistas que há muito tempo estavam ausentes dos holofotes.

17) RM: No passado, a grande dificuldade era gravar um disco e desenvolver evolutivamente a carreira. Hoje, gravar um disco não é mais o grande obstáculo. Mas a concorrência de mercado se tornou o grande desafio. O que o artista deve fazer para se diferenciar dentro do nicho musical?

Rúrion Melo: Fazer por convicção algo de qualidade para mim é o primeiro e mais importante pressuposto. Mas, dito isto, também é preciso saber participar nas redes das quais você pode fazer parte e ter sensibilidade ao contexto. Não há mais um artista único, uma canção única, uma obra musical única, um público único, uma temática única, um modelo único de sociedade, assim como não existe mais um único meio para fazer sua obra chegar a seu público. A relação estrutural “músico – obra – público” se pluralizou muito, e a internet potencializou isso. Nesse sentido, para além de nichos mais evidentes (dividido por estilos musicais), existem cada vez mais públicos que se formam em razão de temáticas e atitudes diversas (raça, gênero, sexualidade, para citar apenas alguns casos). Portanto, saber lidar com as redes sociais, manter a conexão com os interesses do seu público, ocupar espaços físicos e virtuais, e ainda ter capacidade de absorção, renovação e comunicação com o ambiente político e social à sua volta, são estratégias que o artista ou o músico devem agregar a seu processo de estudo e composição. 

18) RM: Como você analisa o cenário da música instrumental brasileira. Em sua opinião quem foram as revelações musicais nas duas últimas décadas?

Rúrion Melo: Trata-se literalmente de um universo inesgotável de criação. É sintomático desse período fecundo o que alguém como Hamilton de Holanda representa para a música universal, não somente no Brasil. Vejo nele os sinais que revelam a tendência positiva do cenário da música instrumental brasileira, mas que se realiza como uma experiência coletiva.

Hamilton de Holanda costuma imprimir em alguns de seus discos uma frase paradigmática: “O moderno é tradição”. Eu interpreto essa frase como forma de compreender o movimento coletivo que reúne novos instrumentistas. E tal movimento se condensa na ideia de “atualização”, na possibilidade de expressar antigas composições com novos meios técnico-interpretativos. Acompanho a evolução musical do Hamilton há muitos anos, do primeiro ao mais recente disco. Esse trabalho envolve muita técnica instrumental, muita pesquisa de repertório, permanente criação, e muito diálogo com correntes e linguagens da música em sentido amplo.

Se eu me restringisse a alguns poucos nomes de uma geração mais nova de exímios instrumentistas, limitados a guitarristas, violonistas, bandolinistas e baixistas, minha lista conteria ao menos Yamandú Costa, Tiago do Espírito Santo, Rogério Caetano, Fábio Peron, Sandro Haick, Michael Pipoquinha, Gian Correa, João Camarero, Luis Barcelos, Danilo Brito, Pedro Martins, Henrique Araújo, Cainá Cavalcanti.  

Em outros instrumentos, mas com esse mesmo propósito, o que André Mehmari tem feito, alguém como Mestrinho, ou a identidade musical única de uma banda como Quartabê (Mariá Portugal, Joana Queiroz, Maria Beraldo e Chicão), com sua interpretação de Moacir Santos, merecem destaque.

Aliás, ao mencionar a Quartabê, uma banda com forte presença feminina, eu gostaria de denunciar mais uma vez o modo como as mulheres continuam sendo sub-representadas no universo da música instrumental, infelizmente. Precisamos relembrar que grandes instrumentistas mulheres foram fundamentais para a consolidação e diversificação da música instrumental brasileira (desde Chiquinha Gonzaga, uma das maiores referências da nossa história musical). Eu mencionaria instrumentistas como Rosinha de Valença, Eliane Elias, Lea Freire, Nilze Carvalho, Badi Assad, Jane do Bandolim, Elisa Meyer Ferreira (do Choro das 3), Paola Picherzki (das Choronas), Andrea Perrone, entre outras. O mundo da guitarra teve Lúcia Turnbull, e hoje despontam novíssimas guitarristas: Juliana Vieira, Lari Basilio Talita Yera, Laís Nunes. Precisamos ouvi-las mais e reconhecer seus trabalhos.

19) RM: Quais as principais técnicas que o aluno deve dominar para se tornar um bom guitarrista?

Rúrion Melo: No caso dos solistas, as técnicas acabam variando bastante em função dos estilos que o guitarrista pretende tocar. Mas se fosse um solista que precisa transitar por todas as possibilidades, penso que ele não poderia evitar ter de estudar algumas técnicas essenciais. Seria necessário dominar as escalas em todos os campos harmônicos (campos maior/menor, menor harmônico e menor melódico), cromatismos, arpejos (ter o CAGED – Sistema 5 de acordes – na ponta dos dedos), tríades (naturais, invertidas, abertas). Técnicas de ligado (pull-off e hammer-on), palhetada alternada, pulos de corda, sweep. Eu acrescentaria aí o estudo das linguagens, pois cada estilo requer uma maneira de tocar, certas sonoridades e intensidades. Bem, isso tudo seria o principal para consolidar os fundamentos da guitarra solo. Há ainda muito além disso para se estudar, claro. 

20) RM: Quais as diferenças das técnicas do Violão e a Guitarra?

Rúrion Melo: Tradicionalmente, a “mão direita” (para quem não é canhoto) do violão brasileiro é tocado com os dedos (fingerstyle), não com palheta. Já guitarras são geralmente tocadas com palhetas (existem grandes guitarristas que não usam palheta para tocar guitarra). Isso é uma diferença inicial bem considerável. Mesmo que muito do braço da guitarra e do violão se perfeitamente igual, a mão direita muda tudo para se poder aprender bem um ou outro instrumento.

Há o violão de cordas de nylon e o de cordas de aço. No caso do de nylon, a sonoridade e a “pegada” são muito distintas quando comparamos com a guitarra (que, além do mais, é tocada com amplificador e pode contar com muitos efeitos – drive, delay, chorus, compressor etc.). Isso altera inclusive o formato dos acordes (você pode tocar a mesma música de maneira diferente nos dois casos), porque existem limitações próprias de cada instrumento, o que funciona bem em um, mas não no outro. Para mim, que me acostumei com o uso da palheta (na guitarra e no bandolim), dominar técnicas de mão direita para o violão foi algo desafiador. Fiquei muito tempo tentando aperfeiçoar minha mão direita, porque não gosto de tocar violão de nylon com palheta.

21) RM: Quais os principais erros na metodologia de ensino de música?

Rúrion Melo: Essa é uma pergunta complexa. Eu a simplificaria respondendo que, no caso do ensino voltado para guitarristas, sobretudo solistas, o maior erro consistiria em transformar o aluno em um mero aplicador mecânico de técnicas. Hoje em dia corremos dos guitarristas que apenas sobem e descem escalas em super velocidade. A técnica é fundamental para que não haja limitação geral, para que você possa executar qualquer coisa que imaginar e conceber, não para que fiquemos repetindo mecanicamente escalas e arpejos sem uma adequada concepção melódica de fundo.

22) RM: Qual é o seu conceito de Improvisação Musical? 

Rúrion Melo: Improvisar, para mim, é parte essencial de toda essa história. Por isso, o estudo do improviso é uma constante na minha trajetória. E exige o conhecimento de muitas técnicas simultâneas. Se estamos tocando Blues, Rock, Jazz, ou Maxixe, Baião, Samba, é preciso modificar caminhos melódicos e células rítmicas. É importante ter estratégias em cada improviso, o que depende de cada música, de seus temas, levadas e dinâmicas. Algumas músicas são desafiadoras mesmo, com harmonias complexas. É preciso então estudar o improviso com profundidade para obter resultados bonitos, de bom gosto, e bem elaborados.

23) RM: E quando você decidiu mudar de carreira profissional? Quais as razões que o levaram a tomar essa decisão?

Rúrion Melo: Mencionei antes que desde cedo adotei uma atitude pragmática em relação ao mercado de trabalho na música. Ao longo dos anos, a rotina que o papel de músico de acompanhamento impôs a mim começou a ficar insuportável. Em primeiro lugar porque sufocou demais o sonho de poder viver da música que eu realmente gostaria de tocar. Imagine você estudar durante 10 a 15 anos sem parar, dedicado ao desenvolvimento do instrumento e da composição, esforçando-se em ampliar, diversificar e aprofundar os conhecimentos da música, mas precisar reprimir constantemente esses conhecimentos acumulados porque a música que exigem que você toque no dia-a-dia da sua profissão o leva na direção absolutamente oposta dos seus interesse e propósitos, obrigando-o praticamente a esquecer ou desconsiderar tudo o que aprendeu.

Foi isso o que aconteceu. Uma frustração com uma profissão que pedia não mais, mas menos de você. Um esgotamento com o horizonte de bares, casamentos, festas, eventos empresariais etc., que certamente podem e devem fazer parte da vida do músico profissional, mas naquele momento pareciam ser a única via por onde ainda deveriam passar as energias que eu dedicava à música. E como eu queria mais do que a profissão me proporcionava, então pensei em mudar os rumos.

Lembro bem quando recusei o convite para fazer parte da banda que acompanharia o KLB por alguns anos. Isso foi no ano 2000. Mas como além de tocar bastante com o Yabadaba Blues e com o “Comfusion” eu já estava cursando a Faculdade de Filosofia e pretendia começar uma Iniciação Científica por lá, isso me pareceu um momento oportuno para a efetivar minha mudança.

Acredito que, se fosse hoje em dia, muito provavelmente eu permaneceria músico profissional porque as condições mudaram, e mudaram para melhor. Existem mais alternativas para a carreira musical. E há outra coisa fundamental. Depois que dei continuidade na minha carreira acadêmica, a música retornou à minha vida por outra via. Não só continuei estudando e tocando em situações diversas, como também passei a pesquisar, ao lado dos meus temas principais de estudo na universidade (ligados à teoria social e política), assuntos vinculados à música.

24) RM: Como você compatibilizou ao longo dos últimos anos atividades diferentes, a musical e a acadêmica?

Rúrion Melo: Isso está diretamente relacionado ao final da minha última resposta. Por causa da minha formação na música, tive a possibilidade de adentrar mais nos debates filosóficos sobre música do que aqueles sem essa formação. E isso facilitou em alguma medida a minha entrada nos campos da filosofia da e da sociologia da música.

Dentro da tradição de pensamento à qual me dedico, a Teoria Crítica, interessei-me muito pela obra de Theodor W. Adorno, em especial suas vastas e importantes reflexões sobre música. Nele encontrei um ponto de convergência frutífero para transitar entre a música e a filosofia. Depois disso, ampliei meus estudos de música de forma mais interdisciplinar, principalmente com ferramentas conceituais para poder me dedicar a pensar a música brasileira. Foi o que fiz, por exemplo, no meu artigo sobre Egberto Gismonti, tendo como pano de fundo as teses do Mário de Andrade e abrindo uma discussão sobre material musical na esteira de Adorno (“O ‘popular’ em Egberto Gismonti”. Novos Estudos CEBRAP, 78, 2007). Depois que me tornei professor universitário, ampliei minha interlocução com os departamentos de música. Tenho atuado em bancas de defesa e eventos na área da música, contribuindo também com pesquisas próprias.

25) RM: Quais os seus livros publicados?

Rúrion Melo: São livros nas minhas áreas principais de pesquisa, voltadas à teoria social e à teoria política. Além de dezenas de artigos em revistas especializadas e livros organizados por outros autores, já publiquei 7 livros de minha autoria ou organização. São eles: Democracia deliberativa (Esfera Pública, 2007); Tensões e passagens: Filosofia crítica e modernidade (Esfera Pública, 2008); O uso público da razão: Pluralismo e democracia em Jürgen Habermas (Loyola, 2011); Manual de Filosofia Política (Saraiva, 2012); Marx e Habermas: Teoria crítica e os sentidos da emancipação (Saraiva, 2013); A teoria crítica de Axel Honneth: Reconhecimento, liberdade e justiça (Saraiva, 2013); Ocupar e resistir: Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016) (Editora 34, 2019).

26) RM: Como é o seu trabalho de tradução? Quais livros você já traduziu?

Rúrion Melo: A formação em filosofia pela USP geralmente exige um contato estreito com línguas estrangeiras. Muitos livros fundamentais estavam disponíveis somente em língua original. Estudei línguas modernas (principalmente inglês, francês e alemão), mas me dediquei mesmo à língua alemã em razão da minha área de pesquisa, que era filosofia alemã. Depois de alguns anos, comecei a traduzir para o português textos do espanhol, do francês, do inglês, e principalmente do alemão. Isso me possibilitou um trabalho de tradução em longo prazo, hoje em dia mais consistente. Desde 2012, coordeno e traduzo livros da Coleção Habermas da UNESP, um projeto audacioso de tradução das obras completas do filósofo Jürgen Habermas para o português.

Foram alguns livros já traduzidos. São eles: Axel Honneth. Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel (Esfera Pública, 2007); Democracia deliberativa (Esfera Pública, 2007); Franz Neumann. O Império do Direito: Teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna (Quartier Latin, 2013); Axel Honneth. Reificação: Um estudo de teoria do reconhecimento (UNESP, 2018). Para a Coleção Habermas da UNESP, os livros (todos de Jürgen Habermas) traduzidos por mim foram: Sobre a constituição da Europa. Um ensaio (2012); Teoria e Práxis. Estudos de filosofia social (2013); Para a reconstrução do Materialismo Histórico (2016); Facticidade e validade: Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia (2020). Continuo a fazer as traduções da Coleção normalmente.

27) RM: Quais os seus projetos futuros na música?

Rúrion Melo: Continuar decifrando os instrumentos, sem dúvida. Preciso me dar mais tempo para aprofundar as linguagens da guitarra, do violão e do bandolim. No caso da guitarra, meu interesse em médio prazo consiste em sistematizar a linguagem dos blocos (harmonia, melodia e solos tocados simultaneamente). Pretendo transpor sobretudo o repertório do Choro, mas não somente. Como eu disse antes, vislumbro como modelo mais exitoso o trabalho de Hamilton de Holanda, seu processo tanto de atualização moderna de repertórios tradicionais quanto de composição própria, de vanguarda. Vou seguir a investigação desse seu trabalho em duas frentes: como músico e instrumentista, de um lado, como pesquisador voltado à sociologia da música, de outro. Acredito que a obra de Hamilton de Holanda, embora conhecida, está apenas começando a ser conceitualmente compreendida.

Há também o projeto de gravar novo disco com meu pai. Ele tem vontade de gravar um disco de parcerias com o Belchior, além de outro disco todo feita a partir de composições com outros parceiros, mas ainda inéditas na voz dele. Também preciso gravar minhas músicas (com repertório instrumental brasileiro). Os produtos, na verdade, serão consequência da continuidade dos estudos.

28) RM: Rúrion Melo, Quais os seus contatos? 

Rúrion Melo: rurionmelo@gmail.com / https://web.facebook.com/profile.php?id=100014096320740

Canal do Músico: https://www.youtube.com/channel/UCMyT9_Wdtg_u4iJScOV9x7w 

Comfusion 2003 Comfusion Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=d2Y7fKXhB-8&t=7s 

ComFusion II Jazz Rock: https://www.youtube.com/watch?v=TfVY1ZNzzuA 

ComFusion II: https://www.youtube.com/watch?v=CAfODzj5gzQ 

ComFusion II Jazz Rock: https://www.youtube.com/watch?v=TfVY1ZNzzuA 

Rúrion Melo – Por Quilo – Solo: https://www.youtube.com/watch?v=JA3-R46VMUY 

Canal do Doutor: https://www.youtube.com/channel/UCSzWYcKn-YELCP6hFU6MAVA


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Uma Revista criada em 2001 pelo jornalista, músico e poeta paraibano Antonio Carlos da Fonseca Barbosa.